Thiago, poeta das águas claras

GISELE CARESIA (*)

Thiago de Mello é fonte de água torrencial que brota das vastas planícies amazônicas. Água abundante. Pura. Cristalina. Quem mergulha nessa fonte fecunda de palavras, versos e poemas tem a sensação de retornar à superfície embriagado de humanidade, purificado pela mata e pelo cheiro de terra molhada.

Thiago, maior poeta vivo do Brasil, completará 95 anos no dia 30 de março. E o Estado do Amazonas festeja, com uma série de eventos, o mestre que, após viver em vários países, há algumas décadas decidiu voltar para sua terra natal e fincar morada no coração da floresta.

Lá, na pequena Barreirinha (AM) onde nasceu, vive há décadas uma vida silenciosa, quase anônima, não fosse a força das suas palavras que se espalharam pelo mundo e atravessaram fronteiras, se unindo às vozes dos grandes poetas de seu tempo.

Maturidade precoce

Ainda muito jovem Thiago deixou Manaus, onde completou os estudos secundários, em direção ao Rio de Janeiro, então capital da República, na década de 50.

No Rio começa a cursar a Faculdade Nacional de Medicina, na Praia Vermelha, um dos locais de encontro da boêmia e da jovem intelectualidade carioca. Ali nascem as primeiras produções literárias e, rapidamente, a maturidade poética de Thiago não passaria despercebida. Pouco depois, por indicação de um sempre atento e genial Carlos Drummond de Andrade, os poemas de Thiago começam a ser publicados no jornal Correio da Manhã.

Mas um dia chegará

em que a oferenda aos deuses

dada em forma de silêncio

em palavras transfaremos.

E se porventura a dermos

ao mundo, tal como a flor

que se oferta – humilde e pura -,

teremos então cumprido

a missão que é dada ao poeta.

E como são onda e mar

seremos palavra e homem

Assim diz o poeta em seu livro de estreia, “Silêncio e palavra”, de 1951, de certa forma prevendo que a medicina seria em breve deixada de lado para dar vazão a sua fonte inesgotável de palavras e versos, arte que Thiago dominava com maestria cirúrgica.

POESIA DE COMBATE

Na turbulenta década de 60, Thiago se destaca como um dos expoentes da efervescência política e cultural que arrebatou os estudantes na luta contra o regime ditatorial que se instalou no Brasil. Contra a repressão crescente aos direitos fundamentais, a poesia de Thiago se levanta, assim como a de outros escritores, poetas e artistas contrários ao golpe que derrubou o governo eleito de João Goulart.

Nessa época se consolida uma forte vertente militante na cultura brasileira, cuja defesa do caráter engajado da poesia tem seu ápice no “Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura”, síntese dos debates travados nos Centros Populares de Cultura (CPCs) ligados à UNE (União Nacional dos Estudantes).

A poesia e demais manifestações culturais se transformam em arma contra a opressão. E, entre os poetas que se destacam estão Thiago de Mello e Ferreira Gullar, que logo vão sofrer as agruras do regime ditatorial, sendo presos, perseguidos, exilados e obrigados a viver longos períodos fora do Brasil.

É de 64 seu poema mais conhecido, “Os Estatutos do Homem”, onde Thiago declara os valores primordiais da vida e decreta em artigo:

Fica decretado que os homens

estão livres do jugo da mentira.

Nunca mais será preciso usar

a couraça do silêncio

nem a armadura de palavras.

O homem se sentará à mesa

com seu olhar limpo

porque a verdade passará a ser servida

antes da sobremesa”

EXÍLIO NO CHILE

Perseguido, Thiago parte para o Chile, onde permaneceria num longo exílio iniciado em 66 e que só terminaria em 73, com o golpe e assassinato do presidente Salvador Allende.

No Chile aprofunda a amizade iniciada no Brasil com o poeta maior das Américas, o chileno Pablo Neruda, e convive com um grande número de brasileiros também exilados e acolhidos pelo governo socialista de Allende. Sobre seu convívio com Neruda, Thiago conta ter aprendido “como é fácil escrever difícil (…) O difícil, o que dá muito trabalho, o que demanda esforço cotidiano, é conseguir a simplicidade no ato de escrever literariamente”.

Em seu exílio chileno, Thiago publica seus livros mais conhecidos: “Faz escuro mas eu canto” (1966) e “A canção do amor armado” (1967).

Escrevo esta canção porque é preciso.

Se não escrevo, falho com o pacto

que tenho abertamente com a vida.

É preciso fazer alguma coisa

para ajudar o homem.

Mas agora

Após o golpe que aborta a nascente revolução chilena e escreve uma das mais dramáticas páginas da história da América Latina, Thiago parte para o exílio na Europa, morando em países como Portugal, França e Alemanha. Décadas mais tarde, voltaria a declarar seu amor ao Chile no poema escrito em 1996.

De todo o meu caminho percorrido

pelas quatro estações de tua luz,

entre ágatas, estrelas, lápis-lázulis,

guardo a manhã dos pêssegos floridos,

as fondas, as bandeiras de setembro,

pastel de choclo, cazuela de congrio,

Neruda e a noite de Valparaíso,

Nemésio e seu taller 99,

Prado e seus volantines,

Violeta e sua guitarra

e todo o povo cantando na Alameda

a reconquista do pão

e da luz manancial da liberdade

RETORNO AO BRASIL

A volta de Thiago ao Brasil, décadas mais tarde, acontece junto com o desabrochar do processo de redemocratização do país, quase duas décadas após sua partida.

“Voltei para o Brasil um ano antes da anistia (por isso fui preso ao chegar, já sabia que ia ser preso) porque achava que estava ficando doido. Atravessava a ponte sobre o rio Reno, entre Mainz e Wiesbaden (cidade onde Dostoievski escreveu O jogador) e sentia cheiro de pirarucu. Cheiro de pimenta-murupi. Sentia falta da fala, do canto, do jeito de viver de minha gente. Bem, quando anunciei a minha decisão (que tomei ainda na Europa), de que, ao regressar, ia morar na floresta, os amigos discordaram”, conta Thiago sobre o fim do longo exílio.

Após seu retorno, em 1979, Thiago levanta com fervor a bandeira da anistia para ajudar a soterrar os últimos momentos de um já esquálido regime militar. Viaja mais de dez capitais com o show intitulado “Faz escuro mas eu canto”, com suas poesias musicadas pelo cantor e compositor Sérgio Ricardo, um dos principais nomes da cultura de protesto dos anos 60.

Madrugada camponesa,

faz escuro ainda no chão,

mas é preciso plantar

noite já foi mais noite,

a manhã já vai chegar

MERGULHO NA AMAZÔNIA

A partir da década de 80, as reflexões filosóficas passam a ocupar uma dimensão maior na obra do poeta e nascem “Mormaço na floresta” (1984) e “Num campo de margaridas” (1986). É dessa época também sua decisão de se recolher definitivamente na pequena Barreirinha para um reencontro com a floresta, os rios e suas nascentes, que voltam a residir mais intensamente na obra do poeta.

Como um rio

Ser capaz, como um rio

que leva sozinho

a canoa que se cansa,

de servir de caminho

para a esperança

O exílio voluntário na mata rende ainda mergulhos solitários na existência, reflexões sobre a vida e sobre o sentido da poesia, temas mais presentes nos seus livros da década de 90, “De uma vez por todas” (1996) e “Campo de milagres” (1998).

Alguns, da arte só pela arte,

me torcem a cara quando

canto em nome do meu povo

a aurora da liberdade

Em meio a essa produção contínua, Thiago escreve “Borges na Luz de Borges”, um livro dedicado ao escritor argentino Jorge Luis Borges, a quem Thiago descreve como “um homem que cria com a água e o fogo das palavras, um mundo que reúne e resume o mundo real, um reino de imagens e ideias cuja beleza está destinada a perdurar no tempo dos homens”.

Aos 95 anos, Thiago tem livros publicados em países como Chile, Argentina, Estados Unidos, Alemanha, França, entre vários outros. Além da vasta produção poética, escreveu livros infantis, coletâneas e traduziu para o português obras de Pablo Neruda, Ernesto Cardenal, César Vallejo e outros autores de língua espanhola.

Com seus 95 produtivos anos recém completados, promete para breve um livro de memórias, ainda sem data para ser concluído, que batizou de “Os outros comigo”.

Ao que tudo indica, a idade não alcança o poeta, pois se é certo que os poetas transcendem ao tempo, Thiago continua a escrever e a declamar com coração de menino.

As colunas da injustiça

sei que só vão desabar

quando o meu povo, sabendo

que existe, souber achar

dentro da vida o caminho

que leva à libertação

Vai tardar, mas saberá

que esse caminho começa

na dor que acende uma estrela

no centro da servidão

De quem já sabe o dever

(luz repartida) é dizer.

Quando a verdade for flama

nos olhos da multidão

o que em nós hoje é palavra

no povo vai ser ação

(Quando a Verdade for Flama)

(*) Jornalista.

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