Eduardo de Oliveira, um intrépido guerreiro

SIDNEI SCHNEIDER

(Letras do HP, 16/11/2016)

Quando a pesquisadora Zilá Bernd, autora de vários livros sobre a literatura negra no Brasil e na América Latina, aborda os principais representantes da poesia negra no nosso país – poesia esta não relativa à mera gradação da cor da pele do poeta ou à temática em causa, mas a que revela um sujeito enunciador que se assume como negro no discurso literário – a ordem cronológica inicia com Luiz Gama e Cruz e Sousa, do século XIX, passa por Lino Guedes e Solano Trindade, nascidos na primeira década do século XX, e o quinto poeta é Eduardo de Oliveira (1926-2012). Estes, os desbravadores, os que lutaram e abriram caminho contra toda sorte de preconceitos e dificuldades para alcançar a sua poesia aos poetas que vieram depois e a todos nós (Ver Zilá Bernd, Poesia Negra Brasileira, Porto Alegre, AGE/IEL/IGEL, 1992).

Mesmo percebendo o nome de Eduardo de Oliveira entre os precursores, confesso que só agora, ao preparar estas palavras, me dei conta da exata posição que ocupa nessa linha sucessiva. Conheci o professor Eduardo, como todos o chamavam, logo após a vitória do fim da ditadura, em 1985. Admirado pela sua firmeza e amabilidade, senti nele um remanso levemente triste entre um sorriso e outro, de quem sofreu muito mas jamais se esmagou, que pareceu menor e até esvaído nos encontros seguintes.

Fundador e presidente da mais ampla instituição negra do país, o Congresso Nacional Afro-Brasileiro (CNAB), primeiro vereador negro de São Paulo, lutador permanente de todo o povo, autor do volumoso e ilustrado Quem é quem na negritude brasileira (São Paulo: CNAB; Brasília: SNDH, 1998, já na 3ª edição), articulador das principais lideranças negras mundiais, e me abstenho de outras alusões para me concentrar em sua poesia.

De Castro Alves (1847-1871), abolicionista de primeira hora, disse um apressado crítico que “deu voz aos que não tinham voz” – a postulação é algo imprecisa, bastaria lembrar as lutas, revoltas, fugas em massa e embates políticos encabeçados pelos próprios negros, escravos ou não, e, do ponto de vista da escrita literária, que o poeta Luiz Gama (1830-1882) lhe é anterior, inclusive no que diz respeito à obra publicada, pois as Primeiras Trovas Burlescas, editadas pelo próprio, são de 1859, quando Castro Alves ainda era um garoto. Se é verdade que o registro de tal voz em livro circulante não era, não foi, nem é tarefa fácil, o professor Eduardo refunda a questão com um simples “na”, uma preposição, e isso numa época bem mais intrincada e preconceituosa do que a atual: “Eu me levanto aqui/ na voz dos que não podem falar”. Ou seja, o próprio sujeito negro, através da voz coletiva do poema, está se fazendo ouvir: “Surgirei das chagas da dor/ trazendo o bálsamo da vida/ o perfume de um sonho/ esquecido no coração dos homens”. (Voz emudecida, in Gestas Líricas da Negritude, São Paulo, Obelisco, 1967).

O poema que dá título ao citado livro vai além: “Eu quero ser no mundo uma atitude/ de afirmação que, unicamente, cante/ com poderosa voz, tonitroante,/ a gesta lírica da negritude”, para terminar nos seguintes tercetos, “Eu seguirei feliz, de braços dados/ com meus irmãos dos cinco continentes…/ que a todos amam, porque são amados.// E quando se ama a Humanidade inteira,/ os ideais – por mais nobres, mais ardentes – / irmanam-se numa única bandeira.” [grifo da coluna]. Assim, quem mais sofreu, mas igualmente mais lutou e dirigiu a luta e chamou a lutar, é quem em melhores condições se encontra para se irmanar com a humanidade, exatamente porque se colocou no centro da luta sobre o destino do país e do mundo. Descartada a ideia de que se aferrar ao gueto seja uma solução orgulhosa, conforme apregoam certos articulistas franceses e norte-americanos para manter o seu status quo, ainda faremos uma pergunta.

Esse sentimento de irmandade não traria implícito um baixar de tom, um descer no degrau da luta? De jeito nenhum, basta ler a primeira das sete estrofes do poema Banzo, dedicado ao líder revolucionário congolês Patrice Lumumba: “Eu sei, eu sei que sou um pedaço d’África/ pendurado na noite do meu povo./ Trago em meu corpo a marca das chibatas/ como rubros degraus feitos de carne/ pelos quais, as carreatas do progresso/ iam buscar as brenhas do futuro.” (Banzo, São Paulo, Obelisco, 1965). Ou os versos de Impávidos guerreiros, que contrapõem o vigor da luta àquela ideia isolacionista: “Lá vamos nós! Alegres e otimistas!/ Como vão os intrépidos guerreiros”, pois estes são os “que não se abatem como os pessimistas// Não se pode fugir a vida inteira,/ aflitos, como foge um condenado,/ sem se ter, um só níquel na algibeira.// Por que sair, ao léu, partir a esmo,/ à procura de um céu iluminado,/ se este céu que buscamos é aqui mesmo?” (Carrossel de Sonetos, São Paulo, Pannartz, 1995). Não por acaso o relevante crítico Tristão de Ataíde, ao abordar a poesia de Eduardo de Oliveira em 1966, a qualifica “não apenas como instrumento de redenção, mas como voz da própria beleza eterna, inseparável da verdade e do bem”, citando ainda o martinicano Aimé Césaire e o senegalês Léopold Senghor.

Ante esse 20 de novembro, em que a Rádio Independência Brasil apresenta um especial sobre Eduardo de Oliveira, recordo que, junto da amizade que me concedeu, também fui muito amigo do poeta Oliveira Silveira (1941-2009), articulador do grupo Palmares, que, em Porto Alegre, no ano de 1971, pesquisou e definiu o dia 20 de novembro de 1695 como a data da morte de Zumbi, hoje transformada oficialmente em data nacional, e autor do conhecido Encontrei Minhas Raízes (Roteiro dos Tantãs, Porto Alegre, ed. a., 1981). A unidade de todos os que lutam, pela causa do negro e da libertação nacional, reciprocamente implicadas e na verdade uma causa só, é condição para tirarmos definitivamente o país das garras da agiotagem e do atoleiro: “O negro não é incriado./ Não é objeto de escárnio, comiseração, uso doméstico,/ ou uma peça à parte do contexto social.// Deixai, pois, Brasil,/ que sois ainda o ideário apostólico do Futuro,/ que as gerações negras introduzam/ em todas as vossas células o oxigênio restaurador”. A Nação e o negro não existem separados: “Brasil!/ Que esperais mais que aconteça?// Pois bem./ Deixai, Oh! Brasil!,/ que a ternura do negro/ acaricie a rigidez de nossas estruturas/ de ferro e de cimento” (Balada Negra a Senghor, in Gestas Líricas da Negritude, op. cit.).

Se, dos cinco poetas inicialmente citados, Luiz Gama nos legou um poema como Quem sou eu? (Bodarrada), Cruz e Sousa a dura crítica de Escravocratas, Lino Pinto Guedes um Novo rumo!, Solano Trindade o Sou negro, o poeta Eduardo de Oliveira, entre outras coisas, nos ofereceu a letra e a música do Hino à Negritude, escrito aos dezesseis anos de idade e hoje oficialmente instituído em âmbito federal, a ser cantado futuro adentro.

P.S.: O professor mencionou três livros inéditos nas folhas de rosto do livro de 1995. Fiquei especialmente curioso ante as mencionadas trovas populares de Suspiros de um Negro Simples.

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